Já Faz Parte de Mim

Já Faz Parte de Mim

von: Alan Pereira

Alan Pereira, 2018

ISBN: 9788591607433 , 197 Seiten

Format: ePUB

Kopierschutz: DRM

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Preis: 0,00 EUR

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Já Faz Parte de Mim


 

01


Duas horas e trinta e um da manhã no relógio de mesa. O led vermelho dos dígitos do contador é o único ponto luminoso na escuridão onde me encontro. Minha mãe dorme profundamente, mas sei que acordará instantaneamente se eu vier a pronunciar seu nome. Sono leve, ligações na hora errada e histórias repetidas — coisas de minha mãe, coisas de sempre.

Após dois anos, este é o último dia de minha vida pacata como desempregado. Eu sabia que teria que me render, mas adiei o máximo que eu podia. Adiei tanto, mas agora estou feliz. Agora eu tenho este contrato, agora posso adquirir todas aquelas coisas que vi na televisão. Agora posso realizar os meus sonhos. De agora em diante, tudo vai mudar.

A brisa da noite entra pela janela e me fascina. Estamos em 01 de janeiro de 2015, auge do verão brasileiro, onde os momentos de frescor são escassos. Mas esta noite é diferente das outras trezentas e sessenta e quatro que ainda viverei neste ano. Esta tem frescor. Tem cheiro de esperança. Cheira a vida.

Em mente, transporto-me para longe dali, além das paredes daquele quarto. Mesmo dentro de casa, sinto-me como se estivesse no topo de um edifício, tão aliviado pela chance que recebi, segurando o contrato em minhas mãos.

Ainda ensurdecidos pela queima de fogos que tomou a virada do ano, meus cachorros permanecem agoniados e inquietos no quintal, atentos a qualquer movimento alheio e aos gatos que passam próximos ao portão de casa vez ou outra. Sofro ao pensar na sensibilidade de audição destes bichanos, capaz de transformar um ruído de espirro em lamento. E o pensamento voa longe. 

“Será que vou conseguir dormir hoje?”, refleti. 

Pode ser o ano de minha vida. Pode ser o recomeço que tanto esperei. Aliás, quanto tempo mais teria que esperar?

O executivo fitara meus olhos com ar superior.

Dentro de seu carro importado, em um prédio corporativo na região da Avenida Paulista, centro financeiro de São Paulo, o mundo ao redor daquele homem era um lugar qualquer, onde habitam em seu imaginário seres humanos que não possuem desejos, metas ou ambições. 

O que ele pensara de mim? Os dias passaram e ainda me recordo com frequência daquele homem, daquela situação. Queria que ele soubesse quem eu era — quem eu realmente sou. Este é o mundo corporativo, aquele que me entristece, mas onde vejo-me inserido cada dia mais. 

Assim, visto minha camisa social com um logotipo de uma grande multinacional, olho para o relógio, despeço-me de minha mãe e vou à luta. Mais um dia atrasado — mais uma conta vencida. Estou completamente ciente de que este não é o futuro que desejo. Mas estou descendo a rua agora.

O logotipo na amarrotada camisa deveria ser daquela microempresa que eu gerenciara por alguns meses, mas os dias foram duros, o suor em vão. Eu sabia que não duraria. Sempre soube.

Julgo como vencidos todos aqueles que decidem seguir qualquer caminho padrão sem procurar saber o que há do outro lado do muro. Disseram-me que eu devo estudar e procurar um emprego? Pois bem, vamos estudar e procurar um emprego. Mas por que tem que ser assim? Este é o único caminho que existe? 

O trem está cheio; a moça que está ao meu lado não consegue alcançar a barra de ferro que eu agarro firmemente, espremido entre outras mãos. Uma leve freada da composição faz com que a garota, distraída com a música em seus fones de ouvido, se projete em minha direção. Ela pede desculpas timidamente; digo que “não foi nada”. Olho para o lado de fora. A composição está lenta, os pensamentos voam mais uma vez.

“Eu já deveria ter comprado um carro”, refleti.

Quase todos os empregados da empresa onde trabalho possuem um veículo próprio, mas eu reluto. Sei que não dá para atravessar uma cidade como São Paulo em minha Caloi, mas a ideia de ter um carro não me agrada. Cortando alguns gastos e me organizando melhor financeiramente, eu compraria um veículo usado com certa tranquilidade. Mas eu gosto daqui. Gosto deste aperto e desta multidão. Quatorze anos de histórias nesse trem. Quatorze.

Pela janela, observo na avenida aquele mar de carros em fila enquanto ouço buzinas mal sincronizadas; a sirene ensurdecedora da ambulância cortando caminho; outro ferido atingido na batalha da vida. Eles odeiam o trânsito, odeiam dirigir e sabem disso. Estão presos em um sonho que almejaram por anos; já estão amarrados àquela zona de conforto. Mas preferem a vida em quatro portas ao ter que viver o aperto do trem. Trem é povo, trem é cheiro de gente. Trem não faz ninguém feliz.

“Próxima estação: Brás. Desembarque pelo lado esquerdo do trem.”

Ninguém desembarca. O trem está lotado. A composição para na plataforma e as portas se abrem lentamente, pois a pressão dos passageiros contra o vagão está prejudicando a abertura. Os passageiros que estão do lado de fora observam a cena ansiosos, como se aquele trem fosse o prato de comida de um moribundo. Dentro do carro onde estou, o sentimento é um só: não cabe mais ninguém.

Coloco o celular em meu bolso e posiciono-me para que minha mochila, acomodada entre meus pés, não seja levada pela multidão. Meus joelhos doem. As mãos estão geladas devido à proximidade da barra de ferro com o ar condicionado. “Um revestimento de plástico nessas barras não custaria tanto dinheiro assim”, pensei. 

Tempo perdido nos faz pensar demais.

Com a abertura das portas e a entrada insana dos passageiros, sinto pressionarem minha coluna com força. Empurrões ensandecidos e pessoas tentando equilibrar-se de alguma maneira em meio à multidão, buscando um espaço para embarcar no trem. Os passageiros que estavam próximos à porta foram jogados em minha direção por aqueles que tentavam adentrar o carro. Faço uma espécie de alicate com a perna e pressiono a mochila com força. Quase perco o equilíbrio.

Um enjoo toma conta de mim. Aquele gosto de manteiga na garganta, o suco de laranja do café da manhã, o pão tostado. Meu celular vibra. Tento levar a mão esquerda ao bolso, mas não consigo alcançá-lo, tamanho o aperto em que me encontro. O aparelho vibra novamente.

Em questão de segundos, as pessoas ao meu redor borram em minha visão como miopia, enquanto sinto o chão se abrir. As pernas amolecem, os sentidos se vão. As vozes silenciam. Aquele céu se foi. 

“Moço, moço! Está tudo bem? O que está sentindo?”

Minha mochila ainda está entre minhas pernas, mas agora estou no chão. Com muito esforço, levanto o braço direito numa tentativa de pedir ajuda. Vejo marcas de vômito logo à frente. Um funcionário da estação está assustado e chama uma equipe para me ajudar. Pede para que eu fique calmo e não me mova.

Estou no chão da plataforma e a estação de trem está em polvorosa, com dezenas de pessoas ao redor tentando entender o que acontecera comigo. A garganta dói e meus ombros estão extremamente pesados. Preciso libertar-me. Tento levantar, mas sou impedido pela pequena multidão, atônita e curiosa.

Tiro o celular do bolso e encontro uma mensagem de Ana. Perguntara se estava tudo bem comigo, pois sabia que eu havia tido um mal-estar no dia anterior.

Havia passado alguns dias lidando com aquela crise de rinite. Febre, gripe, espirros, calafrios — tudo aquilo que eu aprendi a odiar. A frequência impressiona até médicos experientes, mas não a mim. Estou fragilizado, comendo muito mal, não pratico esportes. Mas ela tentou cuidar de mim, mesmo estando tão longe. Aquele sorriso que me encantara. Aqueles olhos...

De volta, o funcionário da estação pede desculpas pela demora e me oferece um banco plástico, bem como um copo d’água. Ele estende a mão; aceito e levanto-me. 

— A equipe de emergências está ocupada com outra ocorrência, me desculpe. Vamos lá, sente-se aqui enquanto preencho o relatório. Tem plano de saúde? Vamos lhe encaminhar para o hospital mais próximo, se desejar.

Entrego ao rapaz o cartão do convênio fornecido pela empresa. A água desce pesada em lentos goles, a fraqueza me consome. Os transeuntes encurtam o passo para me observar. Balbuciam algumas palavras, fazem suas anedotas mentais e seguem adiante. Tudo e nada naquele instante.

O atencioso funcionário da estação traz uma prancheta e começa a fazer as anotações para repassar à ambulância. Sinto-me perdido, com vontade de deitar, a cabeça pesada pelo mal-estar. Preciso de ajuda. Preciso sair daqui. 

“Você está com uma cara péssima, rapaz.”

O clínico geral analisa-me de cima a baixo e folheia o resultado dos exames que eu acabara de entregar a ele. Médicos não gostam que seus pacientes analisem os laudos, temendo que estes realizem uma conclusão equivocada dos fatos. Vivemos diante de tantas regras e imposições que me dou ao luxo de ignorar esta. O exame é meu, o diagnóstico também. Porém, estou tão exausto que entrego o envelope ao doutor sem pestanejar.

Estico o braço enquanto o médico fricciona um pequeno pedaço de metal em minha pele. A vermelhidão é imediata e assim permanece. Ele muda um pouco o ângulo de visão, coça a cabeça, balbucia algumas palavras para si. Penso em questionar o porquê daquilo, mas fico calado. Silêncio total na sala. 

Toc toc. Toc toc.

Uma jovem enfermeira abre a porta do consultório.

— Doutor, tem uma pessoa na recepção querendo falar com o senhor. Ela disse que sabes do que se trata. O que digo a ela?

— Peça para ela aguardar alguns minutinhos, por favor —responde o médico.

— Tudo...